terça-feira, 11 de janeiro de 2011

José Saramago

"(...)Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me parece solto./Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. /É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo./ É um rio./Corre-me nas mãos, agora molhadas./Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem./Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio./Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos./Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória./Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga./Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração./Agora o céu está mais perto e mudou de cor./É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves./E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas./Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro./Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco./Imóvel, espero que toda a água banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumo rosas as suas folhas./Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam./Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva./Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos./Depois saberei tudo.(...)".

Um comentário:

Daniel Costa disse...

Maristela

Gostei muiyo de ler o poema, creio que é mesmo de José Saramago mesmo, não o conhecia. A opção de o postares foi óptima.
Beijos